Pronto há quase 1 ano, protocolo que estabelece critérios e pontuação para escolha começou a ser usado e fevereiro. Profissionais relatam dificuldade em decidir prioridade de vidas. ‘É muito triste, é algo que faz porque tem essa obrigação’, diz intensivista.

Diante do colapso na saúde em Santa Catarina e da fila de espera de pacientes por leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), médicos têm vivido um dilema: escolher quem será entubado em leito de UTI. Desde fevereiro eles estão usando o ‘Protocolo de alocação de recursos escassos durante a pandemia de Covid-19’, que estabelece critérios que ajudam os profissionais a identificar o paciente que tem mais chance de sobreviver.

Quanto mais frágil é uma pessoa, menos ela vai ser capaz de tolerar, não só a doença grave, como os tratamentos agressivos que muitas vezes são necessários para tentar salvá-la. Se a gente quer salvar o maior numero de vidas, precisa saber identificar quais são os pacientes que têm mais chance de sobreviver”, explica a médica intensivista Lara Kretzer.

Ela é uma das autoras deste protocolo, pronto há quase um ano, mas que entrou em prática no mês passado, quando começaram a faltar UTIs. Desde então, a lista de espera só aumenta e tem, agora, mais de 450 pacientes. Santa Catarina ultrapassou na quarta (17) a marca de 9 mil mortes por Covid e 746,6 mil diagnosticados com a doença.

Os critérios para escolha de quem terá leito seguem orientações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira. A Secretaria de Saúde do Estado (SES) de Santa Catarina recomenda o uso do documento.

Hospital da UFSC é um dos que usam protocolo para escolher pacientes que terão UTI — Foto: NSC TV/Reprodução

Segundo Lara, este protocolo é uma forma de os profissionais tentarem agir de forma mais justa e sem precisar decidir sozinho.

A gente precisa proteger os profissionais da linha de frente de terem que fazer sozinhos esse tipo de decisão, porque não é justo. Já está uma carga enorme de trabalho e ainda ter que carregar o peso desse tipo de decisão de maneira individual é tudo que a gente não quer. É muito importante tirar o peso moral, ético, jurídico e emocional dos ombros dos profissionais”, afirma.

O documento foi elaborado por profissionais catarinense, é assinado por diferentes sociedades médicas e levou em conta resoluções do Conselho Federal de Medicina, decisões judiciais, código de ética e até a Constituição Federal.

Os pacientes recebem uma pontuação considerando três critérios:

  1. número de órgãos comprometidos
  2. se tem doenças crônicas avançadas e
  3. a funcionalidade, ou seja, se o paciente tem boa condição física e motora

Em uma situação hipotética com dois pacientes com insuficiência respiratória grave, um de 60 anos, com pressão alta controlada e vida ativa, e outro de 50 anos, com câncer avançado que passa a maior parte do tempo sentado ou deitado, o segundo receberia mais pontos que o primeiro. Assim, o paciente de 60 anos teria a vaga, pois quanto menor a pontuação, maior a prioridade na fila.

Pacientes são classificados por pontos em critério de escolha para conseguir UTI — Foto: NSC TV/Reprodução

‘Realmente trágico’, diz médico

Segundo o médico Rafael Lisboa de Souza, que há 15 anos trabalha na UTI do Hospital Universitário (HU), em Florianópolis, mesmo seguindo os protocolos, é uma situação difícil. Junto com sua equipe, todos os dias ele decide quem vai ficar com o leito.

Você olhar nos olhos de cada um [dos pacientes], alguns já entubados, outros não, e saber que desses 11 você vai levar só um [para UTI] é muito triste, é difícil, é algo que você faz porque tem essa obrigação, mas é algo que fica na tua cabeça o dia inteiro e às vezes à noite. É realmente trágico o que a gente está vivendo”, afirma o médico intensivista Rafael de Souza.

Pelo menos cinco unidades de saúde estão usando este protocolo. No começo do mês, a diretoria do Hospital Celso Ramos, na capital catarinense, chegou a pedir ao Comitê de Ética da unidade de saúde recomendações sobre como fazer a seleção de pacientes.

O Celso Ramos e outras duas unidades de saúde de Blumenau passaram a adotar esse protocolo que já vinha sendo usado pelo HU e pelo Regional de São José.

‘Não tem igualdade’, diz familiar

Enquanto não conseguem vagas para todos os pacientes, os médicos tentam deixar claro a situação aos familiares de pessoas que ficam atrás nos critérios do protocolo seguindo. Uma conversa que a NSC TV teve acesso mostra um profissional da saúde, que teve a identidade preservada, explicando para a família sobre a falta de prazo para se conseguir uma vaga em leito especializado.

“Eu vou ser o mais franco possível, vai doer o que eu vou falar, eu sei. Se a gente colocar ele na fila esperando vaga de UTI, vai ser um dos últimos da fila, pela idade, pelos problemas cardíacos e pelas condições que ele está”, disse o médico à família do paciente, que acabou morrendo depois de três dias na fila de espera, sem conseguir uma vaga.

“Aquilo caiu como uma bomba na minha cabeça. Eu perdi o chão e foi muito triste porque se fala tanto em igualdade, mas nesse momento não houve igualdade, não tem igualdade”, diz a familiar, que preferiu não ser identificada.

Segundo levantamento do G1 SC, ao menos 130 pessoas morreram com Covid enquanto esperavam por leito de UTI. Entre elas está a irmã da professora Damazia Conceição, que ficou 13 dias à espera de leito.

Professora de SC e a irmã dela, que morreu sem conseguir UTI — Foto: NSC TV/Reprodução

A procura por um leito começou no dia 26 de fevereiro pela região Norte do estado. No dia seguinte, foi ampliada para todo estado. A resposta do Estado era: ‘Continuamos buscando leito para este paciente’.

A espera seguiu até 11 de março. O último registro informa que a irmã de Damazia morreu às 22h34 daquele dia.

Foi um momento assustador. Acho que ela estava sofrendo lá, sem uma notícia, sem um sinal de fumaça que viria a vaga“, conclui a irmã.

Fonte: G1 Santa Catarina