Alvo de uma disputa judicial a girafa macho, Zagalo, de 12 anos, que está desde 2006 no zoológico do Rio de Janeiro, pode ir parar em um resort em Mangaratiba. Isso porque o zoo de Brasília ganhou na justiça do Distrito Federal uma reintegração de posse, que garantiria a devolução do animal e uma permuta com o resort para aquisição de um Dromedário. A Fundação Rio Zoo promete recorrer da decisão Foto: ERBS JR./Frame ORG XMIT: ERBS JR./FRAME *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***

A girafa macho Zagalo, no zoológico do Rio de Janeiro

A seleção natural precisou de uns 10 milhões de anos para transformar um herbívoro africano de pescoço modesto no portento zoológico que os seres humanos batizaram de girafa, revela um novo estudo, o qual identificou vários dos genes que estariam por trás da metamorfose evolutiva do bicho.

As alterações no DNA que podem ter dado às girafas seu pescoço descomunal e seu coração incrivelmente potente, entre outras características, foram flagradas graças a uma comparação entre o genoma do bicho e o de seu parente vivo mais próximo, o ocapi, que mede apenas 1,5 m na altura do ombro (enquanto as girafas podem chegar perto de 6 m de altura, com o pescoço correspondendo a mais de 2 m desse total) e também vive na África.

A equipe de cientistas liderada por Douglas Cavener, da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA), e Morris Agaba, do Instituto Africano de Ciência e Tecnologia, na Tanzânia, publicou os resultados na revista científica “Nature Communications”.

É a primeira vez que os genomas da girafa e do ocapi (ambos com cerca de 3 bilhões de pares de “letras” químicas, tamanho similar ao do genoma humano) são totalmente “soletrados”. Os pesquisadores usaram como base de referência o DNA do boi, já relativamente bem conhecido, para facilitar a identificação de genes das duas espécies africanas, que são parentas mais distantes dos bovinos.

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Comparação do tamanho da girafa e do ocapi

Além de estimar que as linhagens das girafas e dos ocapis divergiram (ou seja, separaram-se evolutivamente) há 11,5 milhões de anos, e não há 16 milhões de anos, como se acreditava anteriormente, os pesquisadores montaram uma lista de genes que a seleção natural parece ter favorecido de forma específica ao longo da evolução das girafas.

Um dos métodos usados para chegar a esse resultado tira partido do fato de que, no DNA, mutações podem ser “sinônimas” ou “não sinônimas”. Isso acontece porque a linguagem do código genético é bastante redundante.

Em geral, os genes servem de receita para a produção de proteínas: cada trio de letras de DNA (as letras são A, T, C e G) corresponde a um aminoácido, o qual, por sua vez, é o componente básico das proteínas. É nesses trios que está a redundância: tanto as letras CAA quanto o grupo CAG, por exemplo, servem de receita para a produção do mesmo aminoácido, a glutamina. Trocar o A pelo G no final seria um exemplo de mutação sinônima, que pode acontecer sem que o organismo a sinta, já que a proteína ligada àquele gene não muda. Por outro lado, a trinca CAC é o código para outro aminoácido, a histidina – a troca do A pelo C seria uma mutação não sinônima, que poderia alterar a forma como o organismo funciona.

MUDA MAIS

Foi justamente comparando a taxa desse dois tipos de mutação nos genomas da girafa e o do ocapi que os cientistas começaram a criar uma lista dos genes que tiveram modificações mais significativas no animal de pescoço longo e, portanto, provavelmente estão ligados às suas características peculiares. Num conjunto de cerca de 70 genes, uma coisa que chamou a atenção foi um conjunto de trechos de DNA envolvidos, ao mesmo tempo, com o desenvolvimento do esqueleto e do sistema cardiovascular – o que pode indicar que alterações em alguns desses poucos genes teriam atuado de forma conjunta para forjar a anatomia e a fisiologia peculiares das girafas.

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Comparação do esqueleto da girafa e do ocapi
Comparação das vértebras da girafa e do ocapi

Alguns dos genes identificados, porém, talvez tenham uma função mais específica. É o caso do FGFRL1, “o mais intrigante dos que identificamos”, diz Cavener. Genes dessa família, segundo outros estudos, estão ligados a um desenvolvimento mais prolongado das partes do embrião que são precursoras das vértebras. E é justamente isso que os embriões de girafa fazem para ganhar seu pescoço longo: em vez de adicionar mais vértebras a essa parte do corpo, eles têm o mesmo número de vértebras que os demais mamíferos, só que as suas são maiores.

Outros genes com mutações exclusivas das girafas, da família HOX, ajudam a especificar a ação de outras moléculas do organismo em partes do esqueleto – no caso, a coluna e as pernas. “A combinação dessas alterações pode ter trazido dois ingredientes necessários para a evolução do pescoço e das pernas compridas das girafas”, diz Cavener.

TESTE TRANSGÊNICO

Para tentar confirmar a importância dos genes flagrados pela análise para a trajetória evolutiva peculiar das girafas, os pesquisadores já bolaram o próximo passo da pesquisa: modificar o DNA de camundongos de laboratório, conferindo a eles versões de determinados genes similares às do ungulado africano.

Ninguém espera que isso produza “camundongos-girafa”, obviamente, mas é concebível que tais alterações tenham um impacto importante no desenvolvimento embrionário da coluna vertebral dos roedores, por exemplo, seguindo um padrão parecido com o do herbívoro pescoçudo, o que daria mais peso às hipóteses do novo estudo. O projeto deve ser facilitado pelo surgimento, nos últimos tempos, de técnicas mais precisas e fáceis de “edição” de DNA.

Também é possível que a compreensão dos mecanismos básicos do funcionamento do organismo das girafas ajude, no futuro, seres humanos com problemas cardiovasculares, já que ela parece ser capaz de sobreviver muito bem com uma pressão arterial altíssima.

PESCOÇO E CORAÇÃO
A girafa, o ocapi e seus genes

ADAPTAÇÕES ÚNICAS…
Para sobreviver e prosperar com seu pescoção, a girafa desenvolveu uma série de adaptações únicas, como:

Sangue
Pressão arterial duas vezes maior que a dos demais mamíferos, para poder bombear sangue do coração para o cérebro em trajeto vertical de 2 metros

Força
Fortalecimento dos ligamentos do pescoço com o tórax

… GENES MODIFICADOS
A comparação entre os genomas completos da girafa e do ocapi revelou um conjunto de 70 genes com alterações que foram nas girafas. Entre eles:

Gene FGFRL1
Ajuda a regular o tamanho das regiões do embrião que vão dar origem às vértebras. Isso pode explicar como as girafas ficaram tão pescoçudas, já que elas têm o mesmo número de vértebras que os demais mamíferos, mas as delas são mais largas

Genes HOXB3, CDX4 e NOTO
Ajudam a estabelecer as posições específicas de cada parte do corpo durante o desenvolvimento do embrião, como se fossem “genes Lego”. Teriam garantido que só o pescoço –e não outras partes do corpo das girafas– encompridassem

Fonte: Folha de São Paulo