Faz um ano que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deu a classificação máxima para a crise sanitária mundial.

O Brasil é, agora, o epicentro global da tragédia da Covid-19. O país registrou, na quarta-feira, 2.349 mortes pela doença num único dia. É o pior número de toda a pandemia, marca que foi alcançada exatamente a um dia de completar um ano em que ela foi oficialmente decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Até então, os Estados Unidos eram o único país que havia registrado mais de 2 mil mortes pelo vírus em um único dia, sem que houvesse problema de fluxo de dados. Isso ocorreu em 88 ocasiões diferentes, 20 durante a primeira onda da pandemia, entre março e abril, e outras 68 de novembro até a semana passada. Os EUA, porém, estão em tendência de queda agora, diferentemente do Brasil. A Índia, o México e a Argentina também chegaram à marca, mas, no caso deles, havia dados represados a serem computados, os altos índices eram pontos fora da curva.

 

Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus, Amazonas, estado que registrou maior crescimento de mortes em 2021. Foto: MICHAEL DANTAS / AFP

No Brasil, o registro é consistente com o histórico recente, com seis dias de superação de 1.500 óbitos nos últimos dez dias. O país segue na contramão do resto do mundo, com o avanço da doença descontrolado e em franco crescimento. O país também superou ontem os EUA, que têm uma população 55,9% maior, no número de novos casos diários e na média móvel semanal de mortes. Ontem, segundo o consórcio de veículos de imprensa, foram 80.955 novos infectados, puxados sobretudo pela explosão de casos em São Paulo e nos estados do Sul.

Para a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, a marca de 2 mil mortes em um dia era esperada.

— Esse aumento acentuado acontece porque a gente ainda está colhendo consequências de Natal, Ano Novo, férias e Carnaval, um em cima do outro, com as pessoas se expondo mais — afirma a pesquisadora.

Brasil é a nova China

Em 11 de março de 2020, a China era o foco da preocupação planetária. Agora, o Brasil, recordista de mortos, sem controle da transmissão, sem vacinas suficientes e berço de uma das mais perigosas variantes do coronavírus, a P1, é a nova China no que diz respeito à pandemia. Ontem, Carissa F. Etienne, diretora da Organização Panamericana da Saúde (Opas), disse que a instituição está “preocupada com a situação do Brasil”.

— O avanço de casos e mortes tem se dado em ritmo mais acelerado do que o previsto. Não adianta só oferecer leitos quando as pessoas já estão morrendo na fila. É preciso conter o vírus — diz o pesquisador da USP de Ribeirão Preto Domingos Alves, do portal Covid-19 Brasil. Alves foi o primeiro a vislumbrar que o país entrava numa segunda onda, no início de novembro.

Para a epidemiologista Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúdo Coletiva, os números atuais da pandemia são reflexo de “fracasso” da resposta do governo federal à pandemia.

— Não era para o Brasil estar nesta situação. Essa quantidade de óbitos é inaceitável A gente já vinha alertando há muito tempo e dizendo que viria a crescer — lamenta.

A maior parte do planeta começa a ver um horizonte menos sombrio com as vacinas e a redução do passo da pandemia em países antes duramente atingidos, como Reino Unido, EUA, Portugal, Itália e Espanha. No Brasil, no entanto, os próximos dias serão bem duros: integrantes do Ministério da Saúde avaliaram, de acordo com reportagem do Valor Econômico da última sexta-feira, que o Brasil ainda registraria, nas duas semanas seguintes, mais de 3 mil mortes por dia.

Com 1.572 óbitos diários registrados na última semana e em tendência de alta, o Brasil agora é o país mais atingido pela pandemia. Os EUA, o país com maior número de casos, vem reduzindo drasticamente a transmissão desde que Joe Biden assumiu a presidência. A média móvel de março caiu 75% em relação a janeiro.

O Brasil não só vacina pouco — apenas 5,48% da população foi vacinada — como é o país em que o vírus mais avança.

— Era para termos pelo menos de 40 milhões a 50 milhões de pessoas vacinadas. Em vez disso, temos um um cao — lamenta a sanitarista e epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019).

O Brasil se tornou o exemplo maior de tudo o que poderia dar errado, diz Alves:

— A sociedade se espelha em seus governantes. Nos EUA, a pandemia caiu porque o novo governo deu o bom exemplo. Aqui, temos o contrário. Em um ano tivemos um genocídio.

O Brasil, que já teve um dos melhores programas de vacinação mundo, se mantido o atual ritmo, levará 949 dias ou mais de dois anos e meio, para vacinar toda a população, segundo o MonitoraCovid-19, da Fiocruz. Ontem, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, reduziu mais uma vez a previsão de vacinas que serão distribuídas a estados e municípios em março: ele citou, em discurso, uma previsão entre 22 e 25 milhões de doses. Na segunda-feira, ele havia dado uma estimativa de ter de 25 a 28 milhões no mês.

O ano da pandemia viu a China controlar o vírus em seu território e se tornar uma das maiores fabricantes de vacinas. Viu os EUA, até março de 2020 considerados um dos países mais preparados do mundo, se tornarem o epicentro da pandemia. Porém, com mudança de política e vacina, os EUA mudaram o jogo. A epidemiologista brasileira Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, disse em entrevista ao podcast Ao Ponto que a posse do presidente Biden envolveu uma “mudança radical de postura”, e os EUA começam a perder a semelhança com o Brasil de Bolsonaro.

Natalia Pasternak diz que a pressão de governadores e prefeitos pode surtir efeito no país, mas o governo federal precisa agir em conjunto:

— Este cenário coloca o Brasil numa posição de risco sanitário global. Um país do tamanho do nosso com a pandemia descontrolada pode virar uma grande sopa de novas variantes preocupantes do vírus, com consequências geopolíticas, sociais e econômicas.

Bolsonaro muda de postura

Na tarde desta quarta-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro, habitual crítico de políticas de isolamento social, afirmou que o governo federal chegou a adotá-las no início da pandemia. Usando máscara, ele sancionou, em uma cerimônia no Palácio do Planalto, projetos que facilitam e aceleram a compra de imunizantes.

— Fomos e somos incansáveis desde o primeiro momento na luta contra a pandemia. Desde o início, do resgate de brasileiros que estavam em Wuhan (China), fomos um exemplo para o mundo. Várias medidas tomamos em 2020. A política de lockdown adotada no passado, o isolamento, o confinamento, visava tão somente dar tempo para que os hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores.

No entanto, menos de três horas depois, Bolsonaro voltou a condenar as medidas de distanciamento. Segundo ele, a maioria dos governadores alinhados ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva optou por fechar o comércio e “só sabe a política do fica em casa”.

—  Não faltou (sic) recursos. O governo federal fez a sua parte até demais. Então não justifica essa crítica do ex-presidente Lula, que agora inicia uma campanha. E como não tem nada para mostrar de bom, a campanha é baseada em criticar, mentir e desinformar. Nada mais além disso —  declarou o presidente, que estendeu a crítica aos ge stores estaduais. — Esses governadores, não são todos, só sabem essa política do fica em casa. Não deu certo ano passado, mortes tivemos, mortes continuamos tendo. Infelizmente, de uma forma ou de outra, mortes continuarão acontecendo.

Em um discurso nesta quarta-freira, o ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva, que já se apresenta como presidenciável e potencial rival de Bolsonaro na eleição do ano que vem, defendeu a imunização e atacou seu concorrente: “Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina”.

Fonte: O Globo